domingo, 28 de junho de 2009

Ligação

— Oi, sou eu, eu sei que a carona já está saindo e sei que não quer falar comigo agora, mas você precisa me ouvir antes de ir embora de uma vez, ou não, porque nunca dá pra saber se você está indo pra valer, você sempre parece ir e depois volta e eu me acho sem chão, mas o que eu quero dizer de verdade é que, sim, é claro que eu me acho sem chão, me acho sem chão quando você vai porque você não está mais aqui, e me acho sem chão quando você volta porque a dor ainda existe e eu não sei como sentir mais, e aí eu me sinto sem chão e parece que eu vou cair e cair e cair e você não vai estar lá pra me pegar, mas o que eu quero dizer mesmo é que você está indo pra cidade da sua mãe ver a sua família e diz que não sabe quando volta, mas eu espero que volte logo e volte decidida, eu espero que essa viagem acabe clareando um pouco mais a sua existência, esse seu cérebro engenhoso e brilhante e pensador e pensativo, porque você tem que ver se é assim mesmo, sim, eu sei que o cérebro é interessantíssimo, mas você precisa entender que há coisas além, há coisas muito mais além do que pensar e do que sentir, como quando o vento bate no seu cabelo e aquela mecha teimosa levanta, e que você vira rindo meio bravinha, porque te incomoda apesar de ser bom, e é assim que somos, você me incomoda apesar de ser boa, não, não boa nesse sentido, boa no sentido normal de ser, sabe, de ser boa, você é boa, uma ótima garota e meu coração bate por você como o tambor do Olodum numa festa no meio do Pelourinho, e oi?, não, é claro que não gosto do Olodum, de onde você tirou essa idéia?, o que eu quero dizer é que, sim, é óbvio que eu gosto do seu coração batendo, quando estamos nus e eu posso colocar minha cabeça no seu peito e lá eu descanso e escuto o seu coração, você sabe que adoro, e ah, esquece o Olodum, o que importa é que você é linda e me conquista toda vez que sorri, porque eu adoro como as suas bochechas se levantam quando você vai abrindo os lábios pro canto, e aquela mono-covinha que aparece, e você me conquista quando me pede pra não distanciar, e eu juro, juro mesmo que não quero te abandonar quando você me aperta e pede pra não te deixar mais, pra não te soltar, pra não desgrudar meu corpo do seu, e quê?, é claro, pára de rir esse riso safado, agora não é hora, o que eu quero dizer, não, você não é safada, tudo bem que é um pouquinho, mas é do jeito que eu gosto, e, me deixa falar, olha o que eu quero dizer, bem te dizer que você é irresistível e eu te amo de todas as formas e de todos os jeitos e você é minha grande amiga, minha melhor amiga, mas não dá, você não tem compromisso, você é meio doidinha sim, e eu sei que a sua vida é apertada e corrida e sei como é difícil, oi?, sim eu já estou terminando, o cara espera, me espera acabar, entenda de uma vez por todas que eu te amo mesmo, mas desse jeito não dá, eu não sei se você me ama e eu sei que isso é um pau no cu de tão chato, mas me ouve, me ouve menina linda, eu te quero mais perto e você vai, você sempre vai, e eu nao sei se quero mais isso, me entende?, não sei se quero mais porque não basta só isso pra mim, eu quero sempre mais do que você pode me dar, e as suas aparições repentinas, oi?, não eu não disse que você dá à toa, presta atenção, as suas aparições repentinas quando você bem quer, isso não me faz bem, eu não quero isso, na verdade eu quero você por inteiro sabendo se dividir, e você não consegue, é, daquele jeito que você me pediu daquela vez, lembrou?, mas olha, olha, me ouve, pára com isso e presta atenção, é minha vez de falar porque você sempre está falando, no jantar e no metrô e de manhã e durante o banho, a verdade é que não sei, ok, eu não sei!, não sei se é isso mesmo, não sei nem mais se é amor, e se quer saber você me faz mal, um mal enorme, e você me machuca e depois pinta meu coração como se ele fosse uma folha que você desenha e depois rasga e depois desenha de novo, pois meu coração está cansado disso, eu estou cansado, não, escuta você, escuta você!, oi?, é claro que eu te amo, mas um pouquinho menos do que eu te amava antes, e, sim, estou ouvindo, fale - sim - eu - eu sei, eu sei - é claro que não, como você pode - olha, você não sabe, não faz a menor idéia, e justamente por isso, justamente por isso, e não sei, como eu vou saber o que você quer se você não fala?, fica falando e falando e falando e não fala, minha filha você tem que cagar ou sair da moita, esse chove-não-molha me irrita e quê?, não, você esqueceu mesmo o guarda-chuva, esquece, compra outro lá na cidade, o que eu quero - oi - sim - o que eu quero dizer é que - sim - sim - sim - eu sei - é, ma - ma - sim, mas - sim - tudo bem, eu vou estar te esperando quando você voltar, eu sempre estou te esperando, e claro, eu troco SMS com você durante a viagem, e corre senão você perde a carona, e oi?, sim, eu sei, eu sempre soube, mas você sabe como é, e ham?, uhum, uhum, claro, hahaha sua boba, pára de pensar nisso, e é lógico que não, lógico que não, você sabe que nunca, e ah, eu vou te esperar, mas volta logo que eu já tô até sentindo saudade da sua voz falando e falando, eu sei que eu sou doido, mas você sabe que eu te amo e

(tu tu tu tu)

domingo, 21 de junho de 2009

Você já pensou o mesmo


Afinal de contas, ninguém é perfeito!
Desenho feito por Tomás Amaral. Achei excelente.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Prontocabou

Ela usava aquela mesma saia de quando se conheceram, cheia de flores coloridas e desenhadas, que ele tanto gostava. Ela não gostava muito porque se sentia um jardim desenhado por uma criança, e quando disse isso a ele, ele respondeu que ela era o jardim mais lindo que ele já tinha visitado - daquele jeito risonho antipático, horrível, tão doce. A blusa não era a mesma, optou por usar uma preta, simples assim, porque o que ela ia fazer era desse jeito mesmo, simples assim, pronto acabou. O esmalte das unhas estava desgastado, era verdade; perdera tanto tempo roendo e arrancando o esmalte vermelho que, quando viu, já era hora de sair e não tinha acetona em casa. O cabelo tinha mudado de lado, porque mulher é assim, muda o cabelo quando muda de vida, ou não, vai saber. Ele demorava, como sempre, e ela esperava ansiosa como sempre, porque o cabelo mudou e a vida também, ou não, mas eles continuavam os mesmos. E talvez fosse isso que tornava a coisa toda tão detestável: por serem os mesmos e terem mudado ao mesmo tempo, ou por não terem mudado mas não serem mais quem são. Não era simples como uma blusa preta.

Então ele chegou, andando sempre daquele jeito "não estou nem aí pra nada", mas isso não era verdade. Ele estava aí para ela, ele estava aí para a roupa que ela usava, e ele estava aí pra reparar que ela não tirou o esmalte desgastado - um erro, um vacilo, porque ele a conhecia bem e sabia que ela faria de tudo pra esconder qualquer demonstração de ansiedade e/ou de preocupação. "Falhou", ele pensou. Andava como se fosse o dono da calçada, e no entanto não pisava tão firme, talvez porque ela sempre enfeitou o cara como se ele fosse um deus caminhando pelas nuvens, e era assim que ele se sentia - não um deus, mas sim alguém que só pisava em nuvens brancas e gordinhas quando estava com ela. Era ela, a garota dos sonhos dele, escondida numa saia de flores, num esmalte vermelho, num cabelo partido para o outro lado ("Ela acha que mudou, mas não mudou nada"), parada como se não se importasse em esperar, mas odiando-o por deixá-la esperando.

Os dois se olharam, se encararam por uns segundos, e nisso pesou aquele clima de novela sensacionalista e mexicana: como deveriam se cumprimentar? Ela podia correr pros braços dele? Ele podia abraçá-la pela cintura? Eles trocariam um beijo apaixonado e jurariam continuar juntos? Ela colocaria o cabelo dele para trás da orelha e alisaria seu queixo? Ele deveria sussurrar as boas e velhas promessas no ouvido dela? O que um deveria falar para o outro? Deveriam dizer todas as sensações pelas quais passavam agora? Todos os pensamentos loucos, insanos, desesperados, que fluiam nas mentes de cada um? Todas as vontades, tantas!, muito mais do que todas as descrições desse texto? E por que não faziam nada? Por que não quebravam esse suspense, por que não terminavam logo com isso, já que a situação era uma blusa preta no meio de uma loja de roupas floridas nas nuvens?

- Pronto. Acabou.

Então os dois foram embora e nunca mais se viram.