sábado, 26 de setembro de 2009

No Rain




All I can say is that my life is pretty plain,
I like watching the puddles gather rain.
And all I can do is just pour some tea for two
And speak my point of view,
But it's not sane
It's not sane...
I just want someone to say to me
"I'll always be there when you wake".
You know I'd like to keep my cheeks dry today,
So stay with me and I'll have it made.
And I don't understand why I sleep all day,
And I start to complain that there's no rain,
And all I can do is read a book to stay awake,
And it rips my life away
But it's a great escape.
All I can say is that my life is pretty plain,
You don't like my point of view,
You think that I'm insane.
But it's not sane
It's not sane...
I just want someone to say to me
"I'll always be there when you wake".
You know I'd like to keep my cheeks dry today,
So stay with me and I'll have it made,
and I'll have it made.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Elevator Love Letters

"Surgeons are all messed up. We're butchers, messed up knife happy butchers. We cut people up, we move on. Patients die on our watch, we move on. We cause trauma, we suffer trauma. We don't have time to worry about all the blood and death and crap it really makes us feel. (...) But doesn't matter how tough we are, trauma always leaves a scar. It follows us home, it changes our lives, trauma messes everybody up, but maybe that's the point. All the pain and the fear and the crap. Maybe going through all of that is what keeps us moving forward. It's what pushes us. Maybe we have to get a little messed up, before we can step up."

Elevator Love Letters,
19º episódio da 5ª temporada de Grey's Anatomy.

domingo, 20 de setembro de 2009

Um criminoso

  “Depois saio do quarto, fecho a porta cuidadosamente, vou até a sala, abro a janela, respiro fundo. Uma frase besta aparece toda hora na minha cabeça: amanhã é outro dia. Claro que amanhã é outro dia, porra.
   Aqui no prédio estão dando uma festa no sétimo andar, parece que está animada, música a todo volume, o som bate no prédio em frente e volta, dá a impressão que a festa é lá e não cá, as aparências enganam, quem vê cara não vê. Minhas mãos me incomodam, excesso de dedos. Tenho vontade de fumar, mas perdi os cigarros.
  Vou até a cozinha, abro a geladeira, pego a garrafa de vodca no congelador, pego um copo, ponho uma boa dose de vodca no copo, observo minha mão, não treme nem um pouco, uma mão absolutamente segura, insuspeita, mão de profissional, de cirurgião. Isso mesmo: mão de cirurgião. Bebo um gole.
  Olho em volta. A cozinha está escura. Acendo a luz. De repente os objetos parece que vêm à tona, é essa a idéia, antes estavam afundados na escuridão, agora vêm à tona. Todos exatamente nos seus lugares, nenhum aproveitou a minha ausência para sumir, virar-se do avesso, se transformar em salamandra ou estátua de sal. Essa lealdade das coisas sem vida me enternece profundamente, dá quase vontade de chorar. A gente sempre pode confiar num escorredor ou num fogão de quatro bocas ou num pano de prato, eles são absolutamente incapazes de sacanear a gente. É mesmo um negócio comovente. O amor deve ser mais ou menos isso.
   Apago a luz, saio da cozinha, volto à janela. No edifício em frente ao meu, onde parece que é a festa, só que não é, tem uma mulher sozinha num apartamento no andar bem na altura do meu. De vez em quando ela vem até a janela, provavelmente não consegue dormir com o calor, com o barulho da festa aqui no prédio. Está com uma camiseta comprida, quando ela se afasta da janela, que é baixa, dá pra ver que está com as pernas de fora, talvez não tenha nada por baixo da camiseta, direito dela, afinal de contas está na casa dela, ninguém tem nada a ver com isso. Não chega a se debruçar para fora, nem mesmo se apóia no parapeito como eu, só faz chegar perto da janela, bater a cinza do cigarro, olhar um pouco, voltar para a penumbra da sala. Mais nada.
  Olho para a rua. Da minha janela vejo um bom pedaço de rua, terminando nuns prédios altos com um morro atrás, uma rua não muito movimentada mas também não totalmente morta, e hoje, que é sábado, mais movimentada que nas outras noites. A calçada está cheia de carros, muito mais carros na calçada que na rua propriamente dita, e entre dois carros estacionados vejo um casal abraçado, um abraço bem apertado, se beijando, na verdade estão praticamente trepando em via pública, é claro que não têm para onde ir, ele deve ser auxiliar de escritório, mora com a mãe em Del Castilho, não pode levar a mulher para lá e dizer à mãe: essa aqui é a Fulana, a senhora dá licença, a gente vai pro quarto dar uma trepadinha, não pode, coitado, e ela deve ser balconista das Lojas Americanas, mora numa vaga aqui mesmo em Copacabana, num terceiro andar de Barata Ribeiro, três camas no mesmo quarto, duas numa beliche e a outra num sofá-cama com uma mola quebrada, a dona do apartamento é uma velha alemã gorda e ranzinza, proíbe expressamente as moças de trazer visita para casa, homem então nem pensar, afinal a casa não é delas e sim dela, sou uma senhora de rrrespeito. De modo que não tem outra saída, tem que ser ali mesmo, na rua, entre um Chevette cinza e um Fiat vermelho, bem na cara de quem estiver na janela olhando. Quem tiver olhos que veja. O pior cego é o que não quer ver. Amanhã é outro dia.
   Volto à cozinha. Não acendo a luz, basta a luz da geladeira quando eu abro a porta. Diabólica essa luz que só acende quando eu abro a porta, como se quisesse me enganar, me fazer pensar que está sempre acesa, e não está. Pego a garrafa de vodca, ponho mais um tanto no copo, tenho a impressão desagradável de que os objetos todos estão me olhando com ar de censura, aliás perfeitamente justificável, é claro que os objetos inanimados olham para nós com reprovação, a vida para eles só pode ser um escândalo, uma aberração, exatamente como a morte é um escândalo para nós que somos vivos. De uma colher ou uma toalha pode-se pedir tudo, menos compreensão, menos cumplicidade. Ponho mais uma pedra de gelo no copo, olho para o gelo, ele não me devolve o olhar, me ignora completamente, tem mais o que fazer, está se dissolvendo, virando água, como que eu posso querer que ele tenha alguma empatia comigo? E ainda por cima cai uma gota da torneira da pia, uma gota única e desconfiada, uma espécie de aviso. Saio da cozinha depressa. Volto à janela.
  Lá fora o casal está chegando às vias de fato, por assim dizer. O abraço é cada vez mais apertado, é como duas cobras enroscadas uma na outra, e os dois estão meio que balançando, meio que dançando sem sair do lugar, a coisa tem um certo ritmo, um ritmo insistente, lento, mas que vai acabar chegando lá, é claro que chega lá. Não dá para ver os rostos deles, assim como não dá para ver o rosto da mulher do prédio em frente, que voltou a aparecer na janela, com outro cigarro na mão. Amanhã essa mulher vai sair de casa, vai ter que sair de casa, nem que seja só para comprar cigarro, e vai passar bem no lugar onde aquele casal está neste momento, e a mulher não vai saber o que aconteceu ali na noite anterior, de onde ela está é impossível ver o casal, não dá ângulo, assim como o casal de onde está não pode ver a mulher. E o fato é que a mulher está sozinha no apartamento dela, enquanto aqueles dois, que estão precisando urgentemente de uma cama, só têm o espaço estreito entre o Chevette e o Fiat, e ainda por cima correm o risco de a qualquer momento, no melhor da coisa, serem interrompidos pelo dono do Chevette ou do Fiat indo embora da festa, porque mais cedo ou mais tarde as pessoas que estão na festa vão começar a ir embora, vão entrar nos carros, vão dar a partida, a calçada vai ficar vazia, o casal não pode ficar exposto no meio de uma calçada deserta, os carros garantem um mínimo de privacidade, sem um mínimo de privacidade não dá, ninguém é cachorro não, nem mesmo um ajudante de escritório que mora em Del Castilho e uma balconista das Lojas Americanas que mora numa vaga na Barata Ribeiro. De modo que a solução para eles é mesmo recorrer ao apartamento da mulher, quanto a isso não há dúvida, o problema é: como chegar lá? Preciso de mais vodca.
  Enquanto vou à cozinha buscar mais vodca, tento equacionar o problema. É bom, porque assim evito pensar na luz traiçoeira da geladeira, nos objetos cada vez mais hostis. Muito melhor pensar numa maneira do casal entrar no apartamento da mulher sozinha, o que seria até bem fácil se o homem conhecesse o porteiro, o que é perfeitamente possível porque é muito provável que ele próprio também seja porteiro, os dois são nordestinos, todos os porteiros são nordestinos, portanto todos os nordestinos são porteiros. A solidariedade dos porteiros nordestinos há de funcionar nessas horas, penso, enquanto saio da cozinha, tendo conseguido por vôdca e gelo no copo sem dar a menor atenção para os não-olhares ameaçadores das maçãs e das maçanetas. Mas uma vez dentro do prédio, como que o casal vai conseguir entrar no apartamento da mulher sozinha?
  Chego à janela, e a primeira coisa que vejo é que o casal sumiu. Sumiu! Isso é terrível, todos os meus planos vão por água abaixo, uma noite desperdiçada. Mas não, logo me vem à cabeça uma explicação favorável, altamente favorável, e bastante plausível, também: o casal pode perfeitamente já ter conseguido entrar no prédio graças à cumplicidade natural dos porteiros nordestinos, é isso, é claro que é isso, pronto, tudo resolvido. Mas aí percebo um outro fato novo, outra mudança ocorrida lá fora durante minha ida à cozinha, tudo acontece quando a gente não está olhando, se tivesse alguém olhando o tempo todo para tudo o que existe nada mudaria, o que aliás é uma prova cabal da inexistência de Deus, e um argumento contra a hipótese de que a luz da geladeira está acesa mesmo quando a porta da geladeira está fechada. Ou será a favor? Mas é preciso prestar atenção nos fatos, não nas hipóteses, e eu ia observando que o outro fato novo na rua é a presença de um rapaz tentando atravessar a rua. E agora estou mais animado ainda, mais até que antes, isso que estou sentindo deve ser a tal da felicidade, porque certamente o rapaz é uma solução, tudo está se encaixando nos devidos lugares, é preciso reequacionar todo o problema, agora não se trata mais de (a) uma mulher solitária num apartamento vazio, de um lado, e (b) um casal de nordestinos excitadíssimos, do outro, porém há um terceiro elemento, a saber: (c) um rapaz tentando atravessar a rua. A rua está vazia, não vem carro nenhum, mas assim mesmo o rapaz hesita, apoiado no poste, como se tivesse medo de cair, é claro que está bêbado, ou drogado, sim, a presença do rapaz simplifica muito as coisas. Porque o rapaz pode perfeitamente entrar no prédio da mulher sozinha, ele não é um porteiro nordestino, está drogado mas está bem vestido, pode muito bem ser amigo da mulher sozinha, ou namorado dela, e quanto a mulher for abrir a porta do apartamento para o rapaz, o casal que já está dentro do prédio pode entrar no apartamento junto com ele, o rapaz está drogado demais para opor resistência, e é óbvio que a mulher sozinha não pode fazer nada, ela é uma só e o casal são dois, o rapaz não conta, está completamente tonto, tão tonto que vai ser difícil ele atravessar a rua, mas é preciso que ele atravesse a rua depressa, o casal não pode esperar mais muito tempo, pode chegar o vizinho do apartamento ao lado e achar estranho aqueles dois ali, é claro que não são moradores, nem são empregados do condomínio, o vizinho pode ficar desconfiado: isso, o rapaz tem que atravessar a rua depressa, é importantíssimo, antes que o vizinho repare que o nordestino tem uma navalha na mão, ele está preparado para tudo, o homem prevenido vale por dois, o bom cabrito não berra. Finalmente o rapaz consegue sair do lugar, e eu mal consigo conter um berro, um grito de alívio, finalmente ele está atravessando a rua, ainda que devagar, vamos logo, o casal não pode esperar, o tempo não espera, o canivete do nordestino não pode esperar muito. O rapaz está parado no meio da rua, parece não saber para onde ir, a tensão é insuportável, saio da janela, me jogo no sofá, estou suando, suando mais que o copo na minha mão, preciso completar na minha cabeça aquela cena inacabada, que não consegui assistir até o fim, o rapaz entrando no prédio, o porteiro avisando a mulher, é o seu Fulano, ela dizendo que pode subir, sim, o rapaz andando até o elevador, chamando o elevador, o elevador chega, ele entra no elevador, o elevador começa a subir, são cinco andares, dois, três, quatro, cinco, ele salta, toca a campainha.
  A campainha toca. Aqui, no meu apartamento.
  Levanto de um salto, o copo na mão.
  Abro? Não, não abro. De jeito nenhum.
  A campainha toca de novo.
  Vou até a porta e abro.
   É só o rapaz drogado, querendo saber se é aqui a festa. Ele está tremendo. Eu também estou tremendo. Explico que a festa é no sétimo andar. Ele parece não entender a explicação. O olhar dele é vidrado. Ele é muito moço, quase um garoto, mas o olhar é de um homem velho, muito velho. Reptio que a festa é no sétimo andar. Agora ele entende. Pede desculpas. Agradece. Vai embora. Eu fecho a porta.
  O copo escorrega da minha mão e se espatifa, à toa, à toa.”

"O criminoso";
Texto de Paulo Henriques Britto, retirado de seu livro de contos "Paraísos Artificiais", da editora Companhia das Letras.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Love Song



So you think that it's over,
Say your love has finally reached the end.
Anytime you call, night or day
I'll be right there for you if you need a friend.
It's gonna take a little time,
Time's sure to mend your broken heart.
Don't you even worry, pretty darling
Cause I know you'll find love again.
Love is all around you,
Love is knocking outside the door
Waiting for you,
This is love made just for two.
Keep an open heart and you'll find love again,
I know.
Love is all around you,
Love is knocking outside the door
Waiting for you,
This is love made just for two.
Keep an open heart and you'll find love again,
I know.
It's all around...
Love will find a way,
Darling, love is gonna find a way,
Find its way back to you,
Love will find a way,
So look around,
Open your eyes,
Love is gonna find a way,
Love is gonna,
Love is gonna find a way,
Love will find a way,
Love's gonna find a way back to you,
I know.

Partes

Quebra eu
Quebra nós
Quebra parede
Quebra tudo que é ca be ça
Quebra multidão
( povo povo povo povo
 po vo po vo po vo po vo
  po po po po
  vo vo vo vo

   P  o vo)

Quebra barraco
Quebra cadeira
Quebra o banco, 29
  bota pra quebrar o que restar
          existe CONCRETO depois do resto?

curto e reto
   n
  ã
 o
.

Mas se existir,
Q
 U
E
 B
R
 A

Sai  q u e b
        r
         a
          d
           o
qu
 ebr
  ando

de volta pro

          chão


q  u  e  b  r  o  u







juntatudodenovo

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Sinestesia forçada a partir dos 9

Juro que, enquanto vejo fotos, sinto seu cheiro. Não pelo nariz, não sinto nada mais do que o ar entrando pelas narinas, mas no fundo de um canto escondido do cérebro, eu sinto seu cheiro. Talvez o cheiro da loção pra barba, a "espuminha". Juro que, enquanto isso acontece, consigo ouvir a sua voz em algum lugar da massa cinzenta, em algum lugar eu escuto você me chamando, embora não consiga lembrar exatamente como me chamava. Tento pensar na sua altura e imagino se já teria te alcançado, penso nisso baseada na altura de minha mãe. Acho que até consigo me lembrar das suas mãos, um pouco ásperas por causa de tanto trabalho, vai saber. Não consigo rever seus movimentos, mas acho que consigo imaginar como você andava, como movia os braços, como se mexia. Não consigo ver seus olhos, sempre fixos, sempre parados, culpa das fotos que não se mexem. Mas a nostalgia e a imaginação logo são substituídas pela raiva de não lembrar, porque não lembro, e não lembro. Mas isso abre portas pr'eu imaginar, então fico com o que me resta.

Os paraísos artificiais

  Você está sentado numa cadeira. Você está sentado nesta cadeira já faz bastante tempo. Você fica sentado nesta cadeira durante muito tempo, diariamente. Você não conseguiria ficar parado em pé por tanto tempo; logo você ficaria cansado, com dor nas pernas. Também não conseguiria permanecer tanto tempo assim deitado na cama, de cara para o teto; essa posição se tornaria cada vez mais incômoda com o passar do tempo, até fazê-lo virar-se para um lado — por exemplo, para o lado esquerdo; mas depois de alguns minutos de bem-estar, seu corpo seria dominado pouco a pouco por uma sensação de desconforto que gradualmente se transformaria numa idéia, de início vaga, depois mais nítida, mais e mais, até cristalizar-se nas palavras: "Esta posição é a menos confortável que há", e essas palavras em pouco tempo levariam a estas: "A posição mais confortável de todas seria ficar virado para a direita". A idéia aos poucos se tornaria mais forte, até sobrepujar a inércia natural do corpo, e nesse momento você se viraria para o lado direito. Imediatamente uma sensação deliciosa de prazer lhe invadiria o corpo, como se cada célula sua fosse uma boca a proclamar: "Esta é verdadeiramente a mais confortável de todas as posições". A nova sensação, porém, não perduraria muito tempo; logo você seria obrigado a trocar de posição mais uma vez, e todo o ciclo recomeçaria.
   Mas quando você está sentado, sentado nesta cadeira, nada disso acontece. Você é capaz de ficar sentado nela horas a fio, os olhos fixos na parede em branco, sem pensar em nada, sem sentir nada além da sensação de ter um corpo, de estar ali, sentado, olhando para uma parede em branco, intensamente acordado. Você consegue ficar sentado assim nesta cadeira por muito tempo sem nem mesmo trocar de posição; e quando você se cansa da posição em que está, basta mudar ligeiramente as posições relativas das pernas e dos pés — por exemplo, colocar o pé direito em cima do esquerdo se antes o esquerdo estava em cima do direito — e logo você restabelece o conforto com um mínimo de esforço, sem ter que reestrutrar a posição geral do corpo, como aconteceria se estivesse deitado. É bem verdade que tais trocas de posição não proporcionam a sensação quase orgástica que você experimenta quando, deitado na cama, depois de passar muito tempo voltado para um lado, cada célula de seu corpo é como uma boca clamando: "A melhor posição seria estar virado para o outro lado", e você finalmente se vira; na cadeira, tudo o que acontece é uma leve sensação de desconforto ser substituída por uma leve sensação de conforto. Porém tudo é uma questão de escolha, e entre, de um lado, uma situação em que breves períodos de intenso prazer se alternam com longos períodos de conflito entre inércia e desconforto crescente, e, de outro, uma situação em que perdura uma sensação mais ou menos constante de bem-estar, sem grandes variações, você prefere a segunda. É um direito seu; o corpo é seu.
   Mas esta escolha acarreta certos problemas. Ao contrário da situação da cama, que pelo menos promete o sono, a perda da consciência, o esquecimento de tudo isso que tanto incomoda você, a da cadeira não guarda promessa alguma: é necessário tentar perpetuá-la, fazê-la durar o máximo de tempo possível; porém chega uma hora em que suas pernas começam a sentir-se desconfortáveis em todas as posições possíveis — que, afinal de contas, não são tantas assim —, e mais cedo ou mais tarde você é obrigado a levantar-se, tão desperto quanto antes. E este prolongamento da vigília tem seus perigos. Pois ao levantar-se da cadeira você se dá conta de que a porção de espaço que você ocupou durante tanto tempo, sentado na cadeira, está agora impregnada da presença física do seu corpo; ou seja, ela guarda agora alguns vestígios de substancialidade que seu corpo deixou ali. Cada vez que você voltar a passar pelo trecho do quarto onde estava a cadeira, durante o momento exato em que permaneceu por tanto tempo, você vai sentir uma intensificação súbita da sua existência, de seu próprio corpo — a sensação física de recapturar um pedaço de você que já não lhe pertence. Naturalmente, nada impede que você recoloque a cadeira no mesmo lugar de antes, se sente nela e permaneça ali por quanto tempo quiser, ou conseguir, e durante todo esse tempo goze a sensação de estar na posse da sua materialidade perdida. Mas essa sensação é ilusória, pois esses vestígios não fazem mais parte de você: só podem ser ocupados provisoriamente, como uma roupa que se veste. Assim que se cansar desse jogo e se levantar da cadeira, você vai voltar a perdê-los: mais ainda, vai perder também uma pequena porção adicional de sua matéria, mais vestígios seus que vão ficar no ar, superpostos aos anteriores. Esses vestígios mais cedo ou mais tarde vão se dispersar, com o movimento constante de corpos no quarto, e se perder para sempre. Assim, você está constantemente largando camadas sucessivas de seu ser, desintegrando-se a cada instante de sua existência no espaço; e é por isso que você não é eterno, pelo mesmo motivo que um lápis ou uma borracha não podem ser eternos.
  Mas há uma maneira simples de alterar essa situação — quer dizer, não alterá-la objetivamente, o que seria impossível, e sim modificar o modo como você a vivencia (e como você só sabe das situações o que vivencia delas, para todos os fins práticos modificar sua percepção de uma situação é a mesma coisa que modificar a situação em si): basta sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e começar a escrever.


"Os paraísos artificiais";
Texto de Paulo Henriques Britto, retirado do seu livro de contos "Paraísos Artificiais", da editora Companhia das Letras.

domingo, 6 de setembro de 2009

Crônica da Casa Assassinada (VI)

“  15 — Era evidente que eu não a esperava mais, julgando que ela tinha esquecido sua promessa. Esquecera, não havia dúvida possível, repetia eu comigo mesmo, uma, duas, inúmeras vezes, e aquilo, à força de ser repetido e mastigado como uma humilhação que não se deseja esquecer, tornava-me pálido de raiva. Ah, ela havia-me enganado, escarnecera da minha esperança, dos meus sentimentos, da minha amizade, de tudo enfim — e o mais doloroso é que não havia necessidade daquilo. (...) Agora era impossível não reconhecer que ela me tratava simplesmente como uma criança. Seu próprio movimento, que antes me parecera revelador de tão inequívoca simpatia, desnudava-se aos meus olhos como um gesto vulgar e sem intenção. (No entanto, era fácil constatar que ela transfigurava tudo, desde uma simples risada até ao olhar mais distante e fugidio....) Esse gesto, quantas vezes eu o revivera em pensamento, o coração batendo como o de um colegial! As horas deslizavam, eu permanecia sentado em minha cama, olhos abertos na obscuridade. (...) Que são os fatos de que nos lembramos, senão a consciência de uma fugitiva luz pairando oculta sobre a verdade das coisas?”

Diário de André (II);
Crônica da Casa Assassinada - Lúcio Cardoso.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Crônica da Casa Assassinada (V)

“  (...) Vivia bem até o momento em que compreendi que me achava sufocada, em trevas, e essas trevas, que não me pesavam antes, agora me causam uma insuportável sensação de envenenamento. Sem ar, é como se me debatesse dentro de um elemento viscoso e mole; no fundo do meu espírito, uma força tenta em vão romper a camada habitual, revelar-se, impor a sua potência que eu desconheço e não sei de onde vem. Repito, ignoro o que esteja se passando comigo — surda, causticada, vagueio entre as pessoas sem coragem para expor o que se passa no meu íntimo, mas suficientemente lúcida para ter certeza de que um monstro existe dentro de mim, um ser fremente, apressado, que acabará por me engolir um dia. Ah, que voz é esta que rompe meus lábios, que é isto que me faz andar de cabeça erguida, que me atira para a frente, como um ser ferido pelo aguilhão? (...) Várias vezes o vi seguir-me com expressão inquieta, e talvez devesse me ter detido, procurando expor o transe em que me debato. Mas Padre, a danação é um fogo que arde solitário; às vezes ardemos um, ardemos dois, ardemos toda uma comunidade, mas isolados em nossa chama particular, donos únicos daquilo a que poderíamos chamar o nosso malefício e o nosso ultraje. (...) Sei que iniciei esta confissão como uma carta destinada a sobreviver à minha morte; creio no entanto que este é o último, o mais desesperado dos esforços para reencontrar a mim mesma, e ser, apagada e fria, não feliz como poderia desejar, mas indiferente, como sempre o fui. (...) A Esperança é a mais vital das virtudes teologais: sem ela tudo se cresta, e não há que exista sem o seu apoio, nem caridade que nos aqueça o coração sem sua constante assistência.”

Segunda confissão de Ana;
Crônica da Casa Assassinada - Lúcio Cardoso.