quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Crônica da Casa Assassinada (V)

“  (...) Vivia bem até o momento em que compreendi que me achava sufocada, em trevas, e essas trevas, que não me pesavam antes, agora me causam uma insuportável sensação de envenenamento. Sem ar, é como se me debatesse dentro de um elemento viscoso e mole; no fundo do meu espírito, uma força tenta em vão romper a camada habitual, revelar-se, impor a sua potência que eu desconheço e não sei de onde vem. Repito, ignoro o que esteja se passando comigo — surda, causticada, vagueio entre as pessoas sem coragem para expor o que se passa no meu íntimo, mas suficientemente lúcida para ter certeza de que um monstro existe dentro de mim, um ser fremente, apressado, que acabará por me engolir um dia. Ah, que voz é esta que rompe meus lábios, que é isto que me faz andar de cabeça erguida, que me atira para a frente, como um ser ferido pelo aguilhão? (...) Várias vezes o vi seguir-me com expressão inquieta, e talvez devesse me ter detido, procurando expor o transe em que me debato. Mas Padre, a danação é um fogo que arde solitário; às vezes ardemos um, ardemos dois, ardemos toda uma comunidade, mas isolados em nossa chama particular, donos únicos daquilo a que poderíamos chamar o nosso malefício e o nosso ultraje. (...) Sei que iniciei esta confissão como uma carta destinada a sobreviver à minha morte; creio no entanto que este é o último, o mais desesperado dos esforços para reencontrar a mim mesma, e ser, apagada e fria, não feliz como poderia desejar, mas indiferente, como sempre o fui. (...) A Esperança é a mais vital das virtudes teologais: sem ela tudo se cresta, e não há que exista sem o seu apoio, nem caridade que nos aqueça o coração sem sua constante assistência.”

Segunda confissão de Ana;
Crônica da Casa Assassinada - Lúcio Cardoso.

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