“ (...) — E este anjinho? O que significa este anjinho?
Com a ponta da agulha ela tentava desobstruir o furo da conta de coral. Franziu as sobrancelhas.
— É um anjo, ora.
— Eu sei. Mas para que serve? — insistiu. E apressando-se antes de ser interrompido: — Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel sem papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe, esse colar que você está enfiando... É um colar ou um terço?
— Um colar.
— Podia ser um terço?
— Podia.
— Então é você que decide. Esse anjinho não é nada, mas se toco nele vira anjo mesmo, com funções de anjo. — Segurou-o com força pelas asas. — Quais são as funções de um anjo?
Ela deixou cair na caixa a conta obstruída e escolheu outra. Experimentou o furo com a ponta da agulha.
— Sempre ouvi dizer que o anjo é o mensageiro de Deus.
— Tenho uma mensagem para Deus — disse ele e encostou os lábios na face da imagem. Soprou três vezes, cerrou os olhos e moveu os lábios murmurejantes. Tateou-lhe as feições como um cego. — Pronto, agora sim, agora é um anjo vivo.
— E o que foi que você disse a ele?
— Que você não me ama mais.
Ela ficou imóvel, olhando. Inclinou-se para a caixinha de contas.
— Adianta dizer que não é verdade?
— Não, não adianta. — Colocou o anjo na mesa. E apertou os olhos molhados de lágrimas, de costas para ela e inclinado para o abajur. — Veja, Lorena, veja... Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso... Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? (...). ”
Trecho de
Os Objetos, da escritora
Lygia Fagundes Telles, em seu livro de contos
Antes do Baile Verde.