terça-feira, 3 de novembro de 2009

Crônica da Casa Assassinada (VII)

“  Com uma das mãos segurava a ponta da cortina, com a outra alisava-me a face. Não havia neste gesto nenhuma sensualidade, mas a minúcia, o carinho de um artista pela sua obra. Deste modo acariciou-me as pálpebras, a curva do queixo, o pescoço — e devagar sua mão desceu até a curva do meu colo.
  — É bela, é bela ainda, é muito bela — disse, com a satisfação e a gravidade de um cego que já não teme nenhuma traição da realidade.
  Diante de mim eu via apenas aquele rosto tumefato, que deveria ser sem expressão, e que apesar de tudo, àquela hora, iluminava-se à luz de um fogo concentrado. Abandonou-me com um suspiro, deixando ao mesmo tempo tombar a cortina:
  — Assim você deve se conservar, Nina, para desespero dos homens. Ah, o que eles devem amargar com a sua beleza!
  Na obscuridade, uma última vez, passou docemente a mão sobre meus olhos:
  — Mas vamos, enxugue estas lágrimas; que lhe adiantam elas? As lágrimas não têm grande cotação nesse mundo; e depois, uma pessoa de sua força não deve chorar nunca.
  Dizendo isso, afastou-se. Vi seu vulto submergir na penumbra, enquanto uma vaga cheirando a jasmim flutuava em sua esteira. Continuei sentada e, inexplicavelmente, tive a impressão de que mergulhara numa escuridão maior do que aquela em que estivera antes.”

Continuação da carta de Nina ao Coronel;
Crônica da Casa Assassinada - Lúcio Cardoso.

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