“ — Então? A verdade não se inventa, nem se serve de maneira diferente, nem pode ser substituída - é a verdade. Pode ser grotesca, absurda, mortal, mas é a verdade. Talvez você não entenda, Betty, e no entanto aí é que se encontra o ponto central de todas as coisas.
Calou-se mais uma vez, enquanto ofegava junto de mim. Em seguida, como se reavivasse recordações antigas, fatos possivelmente dolorosos, prosseguiu numa tonalidade em que era fácil adivinhar uma insinuante nostalgia:
— Como um homem - ou melhor, uma sombra de homem - nada me despertava paixão. Era como se eu não existisse. Que é este mundo sem paixão, Betty? É preciso nos concentrarmos, é preciso retirar de tudo sua dose máxima de interesse e de veemência. E se nada me habita, se sou apenas um fantasma dos outros...
Não, não havia dúvida de que eu já não acompanhava seu raciocínio, um tanto atordoada com aquelas expressões vagas. Via apenas o cintilar das lantejoulas, acompanhando o ritmo da emoção que lhe alteava o peito. E ele devia ter percebido minha distração, pois colocou uma das mãos sobre meu ombro:
— Enquanto que agora — e sua voz se iluminou — meu espírito livre se apodera das coisas. Amo e padeço como qualquer um, odeio, divirto-me, e, boa ou má, sou uma verdade estabelecida entre os outros, e não uma fantasia. Você me compreende agora, Betty, você me compreende? (...) Não, não compreende. Aliás, ninguém compreende. A verdade é uma ciência solitária.”
Diário de Betty (I);
Crônica da Casa Assassinada - Lúcio Cardoso.
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