Alguns poucos anos se passaram e estourou uma guerra na região onde a família (dona da bonequinha de pano) morava. Tiveram que fugir o mais rápido possível, pois homens cruéis e sem um pingo de amor no coração queriam dominar as terras - e não mediriam esforços para conseguir seu objetivo. Assim, a família empacotou as coisas mais importantes e valiosas da casa e foi embora, não se sabe exatamente para onde, mas simplesmente foi. E a família andou, e andou, e andou... passou por montanhas, planaltos, rios, florestas, sempre encontrando outras famílias que fugiam também. Ouvia notícias: as coisas não estavam boas. Os homens cruéis avançavam pelas terras cada vez mais rápido, logo alcançariam as boas pessoas se elas não tratassem de correr.
Eis que, uma noite, os familiares se esconderam numa floresta densa e escura, achando que seria um excelente esconderijo, pois ouviram rumores de que os homens estavam próximos. E, nessa floresta, a família esperou a noite passar... até que ouviram gritos, correria: alguma coisa acontecia lá perto. E essa "alguma coisa" era justamente o que mais temiam: os homens chegaram! A família, em pânico, saiu correndo pela floresta, com medo de acontecer-lhes o pior. Mas a bonequinha de pano se soltou da mão de uma das crianças, que não pode retornar para pegar a boneca, e então ficou deitada no chão da floresta, olhando para o topo das árvores escuras.
Tempo se passou e a família não voltou. A bonequinha de pano havia se acostumado a ficar "sozinha" (afinal, em casa, tinha os outros brinquedos como companhia), mas nunca havia se sentido tão só. Teve medo e chorou. Mas o que a bonequinha não sabia é que ela não estava só: havia um reino encantado na floresta, e esse reino vivia dentro das árvores: a floresta era seu mundo. Assim, uma fada ouviu o choro da bonequinha (pois bonequinhas também choram e também riem, mas os humanos são frios demais para poderem perceber) e resolveu ajudá-la.
- Bonequinha, por que chora tanto?
- É que... minha família me esqueceu na floresta, e acho que não vai mais voltar.
- E você não pode procurá-los?
- Não, não posso... sou só uma boneca de pano. Não sou como os homens, que podem sair por aí conquistando o mundo, e não sou como as crianças, que podem correr livres. Não sou como as mulheres, que podem entregar seus corações aos homens tão valentes, e não sou como os velhos, que contam casos de infância. Sou só uma boneca de pano, e para sempre boneca de pano eu serei.
- Bonequinha, você fala como se não gostasse de ser o que é!
- Não é bem isso... gosto de ser boneca, gosto desse vestido, gosto dos brinquedos que são meus amigos. Mas nunca pude conhecer o que havia lá fora e, agora que conheço, não sei bem se gosto. - E há algum motivo para não gostar?
A bonequinha, então, contou pacientemente toda a história que conhecia, até chegar onde estava. A fada ouviu atentamente e, por fim, disse:
- Ainda não vejo motivo para não gostar do mundo. É certo que há muito tempo alguns valores se perderam, mas ainda há esperança.
- Mas bonecas não podem sentir esperança.
- Claro que podem! Por que não poderiam?
- Porque a esperança é uma ilusão, não é? Todos os brinquedos são criados devido à vontade de animarem crianças, serem seus companheiros. Só nos é dado o direito de divertí-las. Entenda, dona fada, não é que eu não gosto disso: eu gosto de verdade. Mas brinquedos não têm sentimentos... brinquedos não são reais, pelo menos não tão reais como um ser humano.
- E o que você está me dizendo não é sentimento, bonequinha?
- Bem...
- Bonequinha, você tem desejos, sonhos, pensamentos, não têm?
- É; de fato, tenho sim.
- Então o que te torna menos real do que um homem?
Nesse momento, a bonequinha voltou a chorar, mas sem saber o porquê. A fadinha ficou indecisa, esperou um pouco, pensou e pensou e então voltou a dizer:
- Eu lhe disse, boneca, que alguns valores se perderam no mundo dos homens. Nesse mundo enorme podemos conhecer gente muito boa, gente muito ruim, até gente que daria tudo para ser uma bonequinha de pano, quem sabe... pelo menos para fazer esse mundo feliz. É fato: seu cérebro não trabalha como o dos homens; no entanto, você pensa como um ser humano. Sua pele não sente dor ou prazer como a dos homens; no entanto, você é capaz de sentir um toque puro e sincero. Seu coração não pulsa como o dos homens; no entanto, você é capaz de amar, sentir medo e desejar. Você é uma bonequinha muito especial.
- Mas sou como todas as outras bonecas, dona fada.
- E você queria ser diferente?
- Sim; eu queria poder conhecer o mundo dos homens de verdade. Mas isso é impossível.
- Fadas não conhecem essa palavra!
Nisso, a fada prometeu à bonequinha que seria capaz de torná-la humana se ela conservasse o seu coração tão puro. A boneca ficou muito animada e prometeu que seria capaz, que daria o melhor de si. Então, num passe de mágica, a fada transformou a bonequinha numa garota de verdade, vestiu a menina com roupas muito bonitas e penteou seus cabelos loiros. Levou a menina até um lago lá perto e pediu que ela olhasse seu reflexo. A bonequinha exclamou:
- Fada, eu sou uma menina! Sou uma menina de verdade!
- Sim, agora você é uma humana, cara bonequinha, mas com coração de boneca.
- Mas dona fada... tem algo errado... meus olhos.
- O que há de errado com seus olhos, mocinha? - riu a fada.
- Bem, meus olhos eram pretos, e agora... estão claros. Estão azuis, dona fada.
- Sim, eu sei.
- Por quê?
- Porque você tem um coração puro, tem cabelos da cor do ouro, tem uma pele macia e tem um sorriso sincero, bonequinha. Mas há muitas pessoas assim no mundo. Somos todos iguais, porém somos todos diferentes ao mesmo tempo.
- Mas isso é possível? - interrompeu a bonequinha.
- Sim, é possível: é algo que você entenderá aos poucos. Então resolvi te entregar esses olhos azuis, bonequinha, para que você seja diferente dos outros.
- Diferente, mas igual - a boneca falou baixinho.
- Exatamente! - a fada sorriu. - No mundo dos homens, dizem que é possível ver os sentimentos e as vontades mais sinceras de uma pessoa ao encará-la, sabia? Porque, olhando nos olhos de alguém, você pode enxergar a alma dessa pessoa... se ela for pura. Então, bonequinha, agora que você é humana, vai precisar manter a sua palavra: conservar o seu coração puro. E correrá o mundo, como você tanto deseja, procurando apresentar o amor e o carinho àqueles que têm o coração corroído pelo abandono, pela tristeza, pela dor.
- Farei isso, dona fada, farei isso! Mas... por que escolheu a cor azul, dona fada?
- Porque é a cor do infinito, bonequinha. É a cor do céu, e o céu não cabe em lugar algum (a não ser nele mesmo), não há como medí-lo, não há como destruí-lo, não há como não existir e como sumir, pois ele é infinito.
- Então meus olhos são da cor do infinito?
- Exatamente. E você sabe o que mais é infinito nesse mundo, cara bonequinha?
- Não... o quê?
- O amor.
Assim, fada e boneca se despediram, mas não com uma despedida triste, e sim sincera. Um dia iriam se ver de novo, não importava como nem quando e nem onde, mas iriam se ver. E não se sabe direito o que aconteceu com a bonequinha: sabe-se apenas que ela cumpriu sua promessa, pois nada no mundo inteiro foi capaz de lhe fazer mais feliz do que olhar para o céu e enxergar seu próprio olhar, sempre tão carregado de amor.
Também não se sabe se essa história é verdadeira ou não: há alguns que não acreditam no que a mente humana é capaz de inventar, há outros que não acreditam numa boa história fantástica, há mais alguns que acreditam em fantasia. Como somos capazes de medir a verdade nas palavras, nos contos, nas histórias? Eu não sei, creio que ninguém saberá... o importante é que, bem, há alguns anos, eu conheci uma menininha doce, com sorriso meio tímido, com cabelos loiros da cor do ouro e com os olhos mais lindos que já vi.
Se essa menina é a tal bonequinha? Bem... acho que sim, acho que não. Só sei que a fada estava certa: o infinito é sempre azul, e o amor é infinito. A cor dos olhos da Carolzinha também.
Feliz aniversário, Carolzinha!
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