sábado, 5 de janeiro de 2008

O Dia do Curinga

(retirando mais velharias)








DAMA DE OUROS
...então o pequeno clown não se conteve e desandou a chorar...

(...)

Alguma coisa fez com que os anões prestassem atenção nas suas palavras sem dar um pio. Talvez porque, apesar de tudo, eles sempre tivessem vivido intrigados com a questão de saber por que o Curinga era diferente de todos.
— Minha casa é em lugar nenhum — prosseguiu ele. — Não sou de copas, nem de ouros, nem de paus, nem de espadas. Também não sou rei ou valete, nem oito, nem ás. Aqui estou eu, um simples curinga. Toda vez que eu mexo a cabeça, meus guizos tilintam e me lembram de que não tenho família, de que sou sozinho. Não tenho um número nem ofício. Não domino a arte de soprar vidro dos anões de ouros, nem a arte da panificação dos anões de copas; a mim me faltam as mãos habilidosas para lidar com a terra, como a dos anões de paus, e também a força muscular dos anões de espadas. Assim, tudo o que sempre fiz foi andar por aí observando tudo o que os outros faziam. Em contrapartida, pude ver um monte de coisas para as quais todos os outros sempre foram cegos.
Enquanto falava, o Curinga mexia o pezinho da perna cruzada e seus guizos tilintavam bem baixinho a cada movimento.
— Toda manhã vocês se levantavam e saíam para o trabalho. Na verdade, porém, vocês nunca estiveram de fato acordados. Pode ser que vocês tenham visto o sol, a lua e as estrelas no céu, e também tudo o que existe e se move sobre a terra... mas vocês nunca viram todas essas coisas como elas realmente são. No caso do curinga é diferente, pois ele veio ao mundo com o defeito de ver coisas demais e de ver todas elas em profundidade!
— Então desembucha de uma vez, seu idiota! — interrompeu-o a Dama de Ouros. — Se você viu alguma coisa que nós não vimos, vá dizendo logo o que é!
Eu vi a mim mesmo! — exclamou o Curinga. — Eu vi a mim mesmo errando por um imenso jardim cheio de arbustos e árvores.
— Você consegue ver a si mesmo do alto? — deixou escapar Dois de Copas. — Será mesmo que os seus olhos têm asas como os pássaros?
— No fundo eles têm, sim. Pois não basta ficar se olhando o tempo todo num pequeno espelho, como as quatro damas aqui do povoado gostam tanto de fazer. Elas estão tão preocupadas com a sua aparência que não se dão conta de que vivem.
— Jamais ouvi tamanho atrevimento — comentou a Dama de Ouros, indignada. — Por quanto tempo esse louco vai poder continuar falando essas asneiras?
— A questão é que eu não apenas vejo todas essas coisas — prosseguiu o Curinga. — Eu também as sinto. Sinto que sou... bem, que sou uma criatura vi... uma criatura viva... uma criatura muito estranha, com pele, cabelos e tudo... uma marionete viva... robusto como um boneco de borracha. "Mas de onde veio este homem de borracha?", eu me pergunto.
— Vamos deixar que ele continue falando essas coisas? — quis saber o Rei de Espadas.
O Rei de Copas fez que sim com a cabeça.❞



"O Dia do Curinga", de Jostein Gaarder.

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