“Depois saio do quarto, fecho a porta cuidadosamente, vou até a sala, abro a janela, respiro fundo. Uma frase besta aparece toda hora na minha cabeça: amanhã é outro dia. Claro que amanhã é outro dia, porra.
Aqui no prédio estão dando uma festa no sétimo andar, parece que está animada, música a todo volume, o som bate no prédio em frente e volta, dá a impressão que a festa é lá e não cá, as aparências enganam, quem vê cara não vê. Minhas mãos me incomodam, excesso de dedos. Tenho vontade de fumar, mas perdi os cigarros.
Vou até a cozinha, abro a geladeira, pego a garrafa de vodca no congelador, pego um copo, ponho uma boa dose de vodca no copo, observo minha mão, não treme nem um pouco, uma mão absolutamente segura, insuspeita, mão de profissional, de cirurgião. Isso mesmo: mão de cirurgião. Bebo um gole.
Olho em volta. A cozinha está escura. Acendo a luz. De repente os objetos parece que vêm à tona, é essa a idéia, antes estavam afundados na escuridão, agora vêm à tona. Todos exatamente nos seus lugares, nenhum aproveitou a minha ausência para sumir, virar-se do avesso, se transformar em salamandra ou estátua de sal. Essa lealdade das coisas sem vida me enternece profundamente, dá quase vontade de chorar. A gente sempre pode confiar num escorredor ou num fogão de quatro bocas ou num pano de prato, eles são absolutamente incapazes de sacanear a gente. É mesmo um negócio comovente. O amor deve ser mais ou menos isso.
Apago a luz, saio da cozinha, volto à janela. No edifício em frente ao meu, onde parece que é a festa, só que não é, tem uma mulher sozinha num apartamento no andar bem na altura do meu. De vez em quando ela vem até a janela, provavelmente não consegue dormir com o calor, com o barulho da festa aqui no prédio. Está com uma camiseta comprida, quando ela se afasta da janela, que é baixa, dá pra ver que está com as pernas de fora, talvez não tenha nada por baixo da camiseta, direito dela, afinal de contas está na casa dela, ninguém tem nada a ver com isso. Não chega a se debruçar para fora, nem mesmo se apóia no parapeito como eu, só faz chegar perto da janela, bater a cinza do cigarro, olhar um pouco, voltar para a penumbra da sala. Mais nada.
Olho para a rua. Da minha janela vejo um bom pedaço de rua, terminando nuns prédios altos com um morro atrás, uma rua não muito movimentada mas também não totalmente morta, e hoje, que é sábado, mais movimentada que nas outras noites. A calçada está cheia de carros, muito mais carros na calçada que na rua propriamente dita, e entre dois carros estacionados vejo um casal abraçado, um abraço bem apertado, se beijando, na verdade estão praticamente trepando em via pública, é claro que não têm para onde ir, ele deve ser auxiliar de escritório, mora com a mãe em Del Castilho, não pode levar a mulher para lá e dizer à mãe: essa aqui é a Fulana, a senhora dá licença, a gente vai pro quarto dar uma trepadinha, não pode, coitado, e ela deve ser balconista das Lojas Americanas, mora numa vaga aqui mesmo em Copacabana, num terceiro andar de Barata Ribeiro, três camas no mesmo quarto, duas numa beliche e a outra num sofá-cama com uma mola quebrada, a dona do apartamento é uma velha alemã gorda e ranzinza, proíbe expressamente as moças de trazer visita para casa, homem então nem pensar, afinal a casa não é delas e sim dela, sou uma senhora de rrrespeito. De modo que não tem outra saída, tem que ser ali mesmo, na rua, entre um Chevette cinza e um Fiat vermelho, bem na cara de quem estiver na janela olhando. Quem tiver olhos que veja. O pior cego é o que não quer ver. Amanhã é outro dia.
Volto à cozinha. Não acendo a luz, basta a luz da geladeira quando eu abro a porta. Diabólica essa luz que só acende quando eu abro a porta, como se quisesse me enganar, me fazer pensar que está sempre acesa, e não está. Pego a garrafa de vodca, ponho mais um tanto no copo, tenho a impressão desagradável de que os objetos todos estão me olhando com ar de censura, aliás perfeitamente justificável, é claro que os objetos inanimados olham para nós com reprovação, a vida para eles só pode ser um escândalo, uma aberração, exatamente como a morte é um escândalo para nós que somos vivos. De uma colher ou uma toalha pode-se pedir tudo, menos compreensão, menos cumplicidade. Ponho mais uma pedra de gelo no copo, olho para o gelo, ele não me devolve o olhar, me ignora completamente, tem mais o que fazer, está se dissolvendo, virando água, como que eu posso querer que ele tenha alguma empatia comigo? E ainda por cima cai uma gota da torneira da pia, uma gota única e desconfiada, uma espécie de aviso. Saio da cozinha depressa. Volto à janela.
Lá fora o casal está chegando às vias de fato, por assim dizer. O abraço é cada vez mais apertado, é como duas cobras enroscadas uma na outra, e os dois estão meio que balançando, meio que dançando sem sair do lugar, a coisa tem um certo ritmo, um ritmo insistente, lento, mas que vai acabar chegando lá, é claro que chega lá. Não dá para ver os rostos deles, assim como não dá para ver o rosto da mulher do prédio em frente, que voltou a aparecer na janela, com outro cigarro na mão. Amanhã essa mulher vai sair de casa, vai ter que sair de casa, nem que seja só para comprar cigarro, e vai passar bem no lugar onde aquele casal está neste momento, e a mulher não vai saber o que aconteceu ali na noite anterior, de onde ela está é impossível ver o casal, não dá ângulo, assim como o casal de onde está não pode ver a mulher. E o fato é que a mulher está sozinha no apartamento dela, enquanto aqueles dois, que estão precisando urgentemente de uma cama, só têm o espaço estreito entre o Chevette e o Fiat, e ainda por cima correm o risco de a qualquer momento, no melhor da coisa, serem interrompidos pelo dono do Chevette ou do Fiat indo embora da festa, porque mais cedo ou mais tarde as pessoas que estão na festa vão começar a ir embora, vão entrar nos carros, vão dar a partida, a calçada vai ficar vazia, o casal não pode ficar exposto no meio de uma calçada deserta, os carros garantem um mínimo de privacidade, sem um mínimo de privacidade não dá, ninguém é cachorro não, nem mesmo um ajudante de escritório que mora em Del Castilho e uma balconista das Lojas Americanas que mora numa vaga na Barata Ribeiro. De modo que a solução para eles é mesmo recorrer ao apartamento da mulher, quanto a isso não há dúvida, o problema é: como chegar lá? Preciso de mais vodca.
Enquanto vou à cozinha buscar mais vodca, tento equacionar o problema. É bom, porque assim evito pensar na luz traiçoeira da geladeira, nos objetos cada vez mais hostis. Muito melhor pensar numa maneira do casal entrar no apartamento da mulher sozinha, o que seria até bem fácil se o homem conhecesse o porteiro, o que é perfeitamente possível porque é muito provável que ele próprio também seja porteiro, os dois são nordestinos, todos os porteiros são nordestinos, portanto todos os nordestinos são porteiros. A solidariedade dos porteiros nordestinos há de funcionar nessas horas, penso, enquanto saio da cozinha, tendo conseguido por vôdca e gelo no copo sem dar a menor atenção para os não-olhares ameaçadores das maçãs e das maçanetas. Mas uma vez dentro do prédio, como que o casal vai conseguir entrar no apartamento da mulher sozinha?
Chego à janela, e a primeira coisa que vejo é que o casal sumiu. Sumiu! Isso é terrível, todos os meus planos vão por água abaixo, uma noite desperdiçada. Mas não, logo me vem à cabeça uma explicação favorável, altamente favorável, e bastante plausível, também: o casal pode perfeitamente já ter conseguido entrar no prédio graças à cumplicidade natural dos porteiros nordestinos, é isso, é claro que é isso, pronto, tudo resolvido. Mas aí percebo um outro fato novo, outra mudança ocorrida lá fora durante minha ida à cozinha, tudo acontece quando a gente não está olhando, se tivesse alguém olhando o tempo todo para tudo o que existe nada mudaria, o que aliás é uma prova cabal da inexistência de Deus, e um argumento contra a hipótese de que a luz da geladeira está acesa mesmo quando a porta da geladeira está fechada. Ou será a favor? Mas é preciso prestar atenção nos fatos, não nas hipóteses, e eu ia observando que o outro fato novo na rua é a presença de um rapaz tentando atravessar a rua. E agora estou mais animado ainda, mais até que antes, isso que estou sentindo deve ser a tal da felicidade, porque certamente o rapaz é uma solução, tudo está se encaixando nos devidos lugares, é preciso reequacionar todo o problema, agora não se trata mais de (a) uma mulher solitária num apartamento vazio, de um lado, e (b) um casal de nordestinos excitadíssimos, do outro, porém há um terceiro elemento, a saber: (c) um rapaz tentando atravessar a rua. A rua está vazia, não vem carro nenhum, mas assim mesmo o rapaz hesita, apoiado no poste, como se tivesse medo de cair, é claro que está bêbado, ou drogado, sim, a presença do rapaz simplifica muito as coisas. Porque o rapaz pode perfeitamente entrar no prédio da mulher sozinha, ele não é um porteiro nordestino, está drogado mas está bem vestido, pode muito bem ser amigo da mulher sozinha, ou namorado dela, e quanto a mulher for abrir a porta do apartamento para o rapaz, o casal que já está dentro do prédio pode entrar no apartamento junto com ele, o rapaz está drogado demais para opor resistência, e é óbvio que a mulher sozinha não pode fazer nada, ela é uma só e o casal são dois, o rapaz não conta, está completamente tonto, tão tonto que vai ser difícil ele atravessar a rua, mas é preciso que ele atravesse a rua depressa, o casal não pode esperar mais muito tempo, pode chegar o vizinho do apartamento ao lado e achar estranho aqueles dois ali, é claro que não são moradores, nem são empregados do condomínio, o vizinho pode ficar desconfiado: isso, o rapaz tem que atravessar a rua depressa, é importantíssimo, antes que o vizinho repare que o nordestino tem uma navalha na mão, ele está preparado para tudo, o homem prevenido vale por dois, o bom cabrito não berra. Finalmente o rapaz consegue sair do lugar, e eu mal consigo conter um berro, um grito de alívio, finalmente ele está atravessando a rua, ainda que devagar, vamos logo, o casal não pode esperar, o tempo não espera, o canivete do nordestino não pode esperar muito. O rapaz está parado no meio da rua, parece não saber para onde ir, a tensão é insuportável, saio da janela, me jogo no sofá, estou suando, suando mais que o copo na minha mão, preciso completar na minha cabeça aquela cena inacabada, que não consegui assistir até o fim, o rapaz entrando no prédio, o porteiro avisando a mulher, é o seu Fulano, ela dizendo que pode subir, sim, o rapaz andando até o elevador, chamando o elevador, o elevador chega, ele entra no elevador, o elevador começa a subir, são cinco andares, dois, três, quatro, cinco, ele salta, toca a campainha.
A campainha toca. Aqui, no meu apartamento.
Levanto de um salto, o copo na mão.
Abro? Não, não abro. De jeito nenhum.
A campainha toca de novo.
Vou até a porta e abro.
É só o rapaz drogado, querendo saber se é aqui a festa. Ele está tremendo. Eu também estou tremendo. Explico que a festa é no sétimo andar. Ele parece não entender a explicação. O olhar dele é vidrado. Ele é muito moço, quase um garoto, mas o olhar é de um homem velho, muito velho. Reptio que a festa é no sétimo andar. Agora ele entende. Pede desculpas. Agradece. Vai embora. Eu fecho a porta.
O copo escorrega da minha mão e se espatifa, à toa, à toa.”
"O criminoso";
Texto de Paulo Henriques Britto, retirado de seu livro de contos "Paraísos Artificiais", da editora Companhia das Letras.
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Um comentário:
bão, tudo isso eu já tinha lido. Nem tem graça...rsrase
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